SEGREDOS FAMILIARES

SEGREDOS FAMILIARES

 

SEGREDOS
FAMILIARES
Além do sigilo em terapia familiar, o terapeuta tem que lidar muitas vezes com outro tipo de sigilo. Aquele que existe dentro da família, onde um ou mais membros são excluídos do conhecimento de seu conteúdo, e que molda as relações determinando a proximidade ou distanciamento entre as pessoas. O que é o segredo familiar? Quando ele deve ser revelado? Como o terapeuta pode agir na revelação? Quais as suas consequências? Diante de um assunto tão delicado, o terapeuta deve atuar com firmeza e habilidade, com o objetivo de evitar danos aos membros da família e ao mesmo tempo reconstituir as relações corrompidas.
Quando pensamos em segredos, pensamos em algo que não pode ser revelado, de caráter sigiloso, compartilhado por duas ou mais pessoas. Desta forma, o segredo é sempre sistêmico, determinando alguns relacionamentos, diferenciando aqueles que sabem daqueles que não podem saber sobre ele. Em terapia, os segredos são elementos de importante investigação, dando direções sobre possíveis hipóteses e possibilitando intervenções potentes na reconstrução de laços familiares comprometidos, ou até mesmo rompidos.
Quando o segredo é nocivo às famílias, os membros familiares revelam um incômodo generalizado, sem que consigam identificar a quais fatos este incômodo possa estar ligado. Geralmente, há uma manifestação de desconhecimento de algo, sem que se saiba a natureza ou conteúdo. Com isso, a comunicação na família que seria funcional em termos de espontaneidade e confiança, torna-se uma comunicação falha, cheia de mistérios e enigmas não compreendidos por aqueles que não sabem do segredo. Observando famílias portadoras de segredos, podemos ver que alguns membros se agrupam e compartilham assuntos, enquanto outros são mantidos fora das conversas, o que determina consequentemente, a intimidade e distanciamento dos membros.
Um segredo nocivo deve ser diferenciado de uma confidência e da intimidade. A intimidade faz parte da vida de qualquer indivíduo, diz respeito a questões que não devem ser compartilhadas com outros porque é relevante ao próprio indivíduo somente. A confidência diz respeito a alguma questão compartilhada numa relação de confiança e lealdade, que não deve ser acessada por outros, e não traz qualquer prejuízo aos outros que são mantidos sem o conhecimento dela. Já o segredo diz respeito a algo que não pode ser revelado, sigiloso, que se oculta ao conhecimento, e cuja divulgação poderia ser prejudicial aos interesses de outros. Com isso, o segredo requer manobras e disfarces, muitas vezes mentiras, para que seja mantido fora do conhecimento do indivíduo a quem ele possa prejudicar.
Na terapia familiar, trabalhamos com valores como abertura e lealdade em contraposição à negação e ao segredo. Contudo, o sentido de limite individual não deve ser abolido. O mundo pessoal de cada um deve ser respeitado. O ideal é que haja um autêntico diálogo entre os membros da família no que diz respeito aos temas importantes da vida familiar.
A lealdade familiar pode ser entendida como uma postura de confiança positiva de um membro em relação a outro de uma família, compreendendo um sentido de dever, igualdade, justiça e valores comuns. Quando um ou mais membros desobedecem à lealdade familiar, carregam consigo sentimentos de culpa, revelam sofrimentos e sensações de não pertencimento. Um segredo familiar pode conter elementos de deslealdade, formando alianças, quebrando outras e formando subgrupos. Em contrapartida, alguns segredos podem dar a seus detentores a sensação de que a lealdade somente pode ser mantida através da manutenção do segredo, como se a manutenção fosse um ato de lealdade e sua revelação fosse uma deslealdade.
Alguns segredos são fundamentais para as boas relações familiares e devem ser diferenciados dos segredos nocivos. A qualidade básica dos segredos positivos é a ausência de incômodo que eles trazem e a duração que geralmente é pequena em relação aos segredos nocivos. No planejamento de uma festa surpresa, ou um presente, o segredo é importante porque ganha seu auge no momento da revelação. Nos segredos nocivos a duração é mais longa e existe uma sensação de incômodo da parte de quem não sabe e a exigência de mentiras e distorções da parte de quem detém o segredo. Eles sempre trazem a destruição da confiança na relação.
Há segredos mantidos por longo tempo, mas a ansiedade causada pela sua manutenção não pode ser mascarada, visto que o detentor do segredo deve ser sempre cuidadoso para evitar assuntos que se aproximem daquele que é o conteúdo do segredo. Já aquele que desconhece, geralmente percebe que há algo sendo escondido, mas não consegue descobrir do que se trata.
Quem desconhece o segredo também apresenta um comportamento ansioso. Visto que sabe que há algo desconhecido, mas não sabe do que se trata, começa a imaginar quais seriam os conteúdos daquilo que desconhece. Assim, mitos e fantasias particulares são criados pelo membro que desconhece, e já que ele não pode saber de algo, é óbvio que este algo deve ser muito ruim. A ansiedade típica de quem desconhece leva a investigações que também devem ser escondidas e uma desconfiança contínua das pessoas a quem mais ama e confusão das próprias percepções, nas quais ele nunca sabe se pode ou não confiar. Este comportamento de investigação e confusão pode ser considerado no mínimo estranho, o que leva os detentores do segredo a mantê-lo por ainda mais tempo.
Aquele que não sabe sobre o segredo, entende as relações familiares sob uma ótica distorcida, com idealizações e fantasias. É comum que quem desconhece sobre o segredo apresente ansiedade, confusões e alterações de comportamento como consequência de ter que responder a ambiguidades que surgem entre desconfianças, revelações, imaginações e desconhecimento da realidade. Quem sabe que existe um segredo, mas não sabe sobre seu conteúdo, encontra-se numa posição de pouco merecimento, fragilidade e incompetência para lidar com assuntos difíceis. A confrontação e a contestação são impossíveis para quem desconhece, o que traz a invalidação da própria pessoa como alguém capaz de lidar com conflitos e consequentemente, a auto desqualificação é sempre certa.
Neste ponto, a comunicação da família já se encontra muito prejudicada, as conversas devem ser mantidas em âmbitos que não se aproximem do assunto do segredo para que ele não emirja. As habilidades familiares necessárias para a resolução de conflitos e dificuldades, se tornam comprometidas, trazendo a sensação de que a pessoa que desconhece é cada vez mais incapaz de saber.
Para que os terapeutas avaliem a necessidade de se revelar um segredo, devemos ter claramente estabelecidas as influências que os segredos têm nas famílias. Caso algum membro apresente sintomas que possam estar ligados ao segredo, caso o segredo traga algum tipo de comprometimento nas comunicações familiares, caso o segredo exija enganos ou farsas para quem o mantém, caso o membro que desconhece possa saber do segredo por uma terceira pessoa, então devemos providenciar as condições para que o segredo seja revelado.
É importante saber quais as pessoas da família sabem sobre o segredo e quem deverá participar da revelação. Muitas vezes, quando um segredo é revelado, aquele que desconhecia se encontra numa posição incômoda em saber que outras pessoas também sabiam do segredo e somente ela o desconhecia. Geralmente aparecem relatos de vergonha da parte de quem desconhecia, acompanhados pela sensação de incapacidade de lidar com o conteúdo do segredo.
A revelação pode ter um efeito de diminuir a dor e trazer alívio, mas pode também trazer um impacto negativo sobre a pessoa que desconhecia o segredo. Por isso, o terapeuta deve criar um ambiente propício para a revelação, onde os membros possam expressar seus sentimentos e pensamentos sobre o segredo e sobre a relação que poderá ficar comprometida.
Algumas vezes nos deparamos com assuntos que não podem ser tratados em família, ou assuntos tabu, que não são exatamente um segredo. Estes casos geralmente envolvem as pessoas da família numa trama relacional onde todos sabem que todos sabem, mas ninguém se atreve a falar sobre o assunto, como se fosse atrapalhar o equilíbrio familiar ou comprometer a lealdade. É comum encontrarmos casos de ofensa sexual, relações extraconjugais, abortos provocados, doenças, mortes, filhos fora da relação conjugal, abuso de substâncias e uma infinidade de outros assuntos sobre os quais a família não quer falar. Nestes casos também encontramos a ansiedade que atinge a todos e compromete a boa comunicação familiar.
Para que o terapeuta possa trabalhar claramente com segredos, ele deve identificar de que forma o segredo tem interferência no momento presente e no bom andamento do processo terapêutico. No caso de um segredo mantido pelos pais, sobre um aborto cometido na adolescência, por exemplo, que não interfere no andamento de uma terapia voltada para a resolução de questões de um dos membros e que não esteja ligada a este segredo, talvez não se faça necessária a sua revelação.
Quando os segredos se referem a fatos passados, mas apresentam o poder de interferir nos relacionamentos e no bem estar individual no presente, então eles devem ser revelados. Cabe ao terapeuta avaliar a necessidade de revelação, o momento certo para que ela ocorra, quais membros da família devem estar presentes e envolvidos na revelação, quais as conseqüências possíveis da revelação, se a revelação deve ser feita em casa ou no consultório junto ao terapeuta. É importante que o terapeuta ajude na revelação, mas quem deve fazer a comunicação do segredo é sempre a pessoa que o mantém, ao invés de deixar a cargo de uma terceira pessoa.
Em minha prática psicoterapêutica costumo pedir ao detentor do segredo que faça uma lista das coisas que gostaria de contar à pessoa que não sabe. Esta lista pode ser feita em casa ou no consultório com ajuda do terapeuta. Posteriormente, peço que a pessoa escreva em forma de carta, usando sua linguagem habitual, todos os itens da lista que deverão ser comunicados. Quando esta carta está pronta, ajudo ao paciente a transformá-la numa comunicação serena, sem uso de palavras ofensivas ou carregadas de emoções negativas. Este processo pode durar algumas sessões, até que a carta seja definida como a comunicação ideal, sem que a pessoa transmita a idéia de raiva ou culpa. Finalmente, peço que seja elaborado um pedido de desculpas, para que os laços possam ser refeitos e a relação possa retomar sua funcionalidade. Definimos então, quais membros serão convidados a participar da sessão de revelação, ou ainda se a revelação será feita em casa, garantindo ao paciente e seus familiares a ajuda necessária para lidar com o segredo após sua revelação.
Na revelação, costumo iniciar a sessão perguntando aos participantes da família o que cada um pensa sobre ter sido convidado a ir àquela sessão. Quando a família ou algum membro desconfia da existência de algum segredo, o assunto surge imediatamente. Quando os membros não desconfiam da existência do segredo, costumo falar sobre os segredos que existem em todas as famílias, que muitas vezes servem para proteção de algum membro, outras vezes não são revelados porque aparentavam ser de pouca importância. Assim, preparo a família para a possível revelação. Falo em seguida, que manter informações secretas da família pode ser algo muito difícil e nocivo para a família quando isso é feito por longo prazo. Comunico que as relações ficam comprometidas diante de um segredo e que a manutenção do segredo pode ser mais destrutiva do que o seu próprio conteúdo. Finalmente pergunto aos membros o que eles pensam sobre isso. Neste ponto, todos os membros já entendem que algum segredo será revelado e é comum que alguém já fale sobre ter conhecimento da existência de um segredo, ou até mesmo conhecer seu conteúdo.
Depois de discutirmos sobre as consequências de manter um segredo, aquele membro que quer revelar alguma coisa anuncia que tem algo a revelar e fala sobre o segredo à família. Podemos nos deparar com agressividade, choro, perplexidade, raiva, tristeza e outras emoções variadas que podem surgir. Devemos nos preparar para lidar com as reações que podem surgir e garantir a todos os membros a assistência necessária para que eles se sintam seguros e para que os laços sejam refeitos após o pedido de desculpas.
Na maioria dos casos, a revelação de segredos traz um grande alívio a todos, com um poder curativo para os relacionamentos. Certamente, guardar segredos pode ser uma forma de proteção, quando julgamos que o seu conteúdo poderia trazer danos caso fossem revelados. Mas devemos ter em mente que a manutenção de segredos pode ser ainda mais nociva, na medida em que determina a qualidade ruim das relações, desqualifica os membros da família e sugere a incapacidade dos indivíduos para lidar com assuntos de grande importância emocional e afetiva. Tirando o véu que esconde os segredos, nos encontramos mais preparados para uma relação familiar mais íntegra, com confiança e sentido de pertencimento, o que todas as famílias deveriam ter.

Conheça um pouco mais a Karine Lacerda Pereira – CRP 14247/04.
Karine é psicóloga, uma das fundadoras do Abrangente e psicoterapeuta com formação em Psicoterapia Familiar Sistêmica com Mara Selvini Palazzoli no Nuovo Centro Per Lo Studio Della Famiglia (Milão, Itália). Formação em Psicoterapia. Breve. Mestra em Psicoterapia e Hipnose Ericksoniana. Membro titular da AMITEF.
E-mail para contato: karine@abrangente.psc.br

Comentários do Facebook

mm
Karine Lacerda Pereira
karine@abrangente.psc.br

Psicoterapeuta há 23 anos com formação em Psicoterapia Familiar Sistêmica. Mestre em Psicoterapia e Hipnose Ericksoniana pelo CEM – Centro Ericksoniano do México.

Nenhum comentário

Deixe um Comentário