15 jan Bem longe dos shows de TV, hipnose é utilizada em terapia para tratar traumas
Pela primeira vez, médico aceitou hipnotizar repórter para que experiência fosse contada em matéria jornalística
“5, 4, 3, 2, 1. Você está hipnotizado”. Esqueça a contagem regressiva e os dedos que estalam a frente dos seus olhos. No “mundo real”, a hipnose costuma ser bem diferente do que o senso comum imagina – e está muito mais próxima de um estado profundo, mas consciente, de relaxamento do que dos shows e malabarismos que se vê nos programas de auditório na TV.
Nada de imitar uma galinha, comer cebola acreditando que é maçã ou muito menos deixar que um carro passe por cima da sua mão para testar os níveis de dor. Na hipnose terapêutica, utilizada como ferramenta em sessões de psicoterapia, o desejo de causar constrangimentos passa bem longe, pra lá da porta do consultório. A ideia aqui é tratar traumas, fobias, dificuldades. Ou até mesmo amenizar dores físicas.
Termo advindo de Hypnos, a deusa grega do sono, a hipnose é, segundo definição da Associação Americana de Psicologia, um estado que envolve atenção focada e consciência periférica reduzida, caracterizado por uma maior capacidade de resposta à sugestão. Mas ela é, antes de tudo, um estado natural da mente, como explica o psicólogo e psiquiatra João Facchinetti.
“Por isso mesmo, muitas vezes as pessoas entram e saem de transe e não notam que estão em hipnose. É um estado comum da vida de todos nós”, diz ele. “Se você está dirigindo, por exemplo, e começa a pensar no que tem que fazer no dia e passa dois ou três quarteirões sem notar, nesse período em que seu corpo estava dirigindo e sua mente estava transitando, você estava em transe. São transes naturais”.
O que ele e outros médicos – outras profissões também são habilitadas a utilizar a técnica – fazem é replicar essas circunstâncias em um ambiente controlado. Abrir espaço para as “possibilidades inconscientes”, ou, traduzindo, para uma comunicação mais fluida com esse conjunto de processos mentais. E, assim, ajudar a construir novos caminhos para a resolução de problemas.
“Quando colocamos uma pessoa em transe abrimos espaço para que o inconsciente se reorganize em favor dela e ela consiga resolver essas dificuldades. Não sou eu que vou mexer no inconsciente das pessoas; vou facilitar uma situação em que o inconsciente vai se organizar. Vou, no consultório, promover condições para que isso aconteça”, ressalta Facchinetti.
Nem todos os problemas cotidianos, claro, precisam desse empurrãozinho para serem solucionados. Os conscientes – como um fotógrafo decidindo a melhor máquina a ser comprada – são elucidados mais facilmente, com um pouco de análise e consideração. Já os que estão em um nível mais profundo precisam de mais trabalho e um pouco de atenção.
“Parte dos problemas da nossa vida resolvemos quando paramos e analisamos. Isso é função do consciente. Agora se alguém tem medo de andar de avião e estuda, sabe que é um meio de transporte seguro, mas continua com medo, não adianta pensar nisso por um ano que não vai resolver. A mesma coisa o medo de barata. A pessoa sabe que a barata não mata, não tem garras, veneno. São funções que só o inconsciente resolve”.
Para desatar esses nós, só mesmo criando “novos caminhos” dentro da mente. Dá para explicar melhor: do ponto de vista da neurociência, o que se sabe até hoje é que o cérebro cria caminhos, formados por circuitos, que utilizamos nas nossas ações e pensamentos. Como exatamente isso acontece ainda não está totalmente elucidado, mas é possível “remoldá-los” para auxiliar na vida cotidiana.
“Se eu crio um caminho cerebral em que começo a ter pavor de elevador, é como se criasse um caminho num gramado que fosse ficando marcado. No processo da terapia, posso aprender a usar um caminho melhor. Mas é importante destacar que, mesmo eu sabendo que o caminho está melhor, o antigo ainda está marcado e, em algumas situações com uma condição ambiental muito contrária, posso voltar a ele”.
Mais uma vez entra o exemplo do avião. “Trabalhamos em uma pessoa com medo de avião e ela perde esse medo. O caminho ainda está marcado, mas ela viaja tranquila, até que vem uma turbulência muito forte, caem as máscaras. Aí ela pode voltar a sentir um pavor imenso, maior que as outras pessoas. Como já abriu outro caminho, pode ser mais fácil reconduzir a ele. Às vezes a pessoa faz por si só”, diz o médico.
Como acontece a hipnose
Na hipnose, paciente fica consciente durante todo o tempo.
Você fecha os olhos, senta confortavelmente, relaxa. O corpo vai ficando mais e mais pesado. A respiração, profunda. É mais ou menos assim a sensação de ser hipnotizado. E foi assim que o psicólogo e psiquiatra João Facchinetti fez comigo em seu consultório no dia da entrevista. Foi a primeira vez que ele aceitou hipnotizar uma jornalista para que a experiência fosse contada em uma reportagem.
Isso porque, ao contrário do que acontece nos shows de TV, utilizado terapeuticamente o método atual de forma suave. É algo bem mais parecido com um estado de meditação – só que com o médico, ou outro profissional habilitado, te guiando no percurso – do que das excentricidades nas quais costumamos pensar quando o assunto vem à cabeça.
No meu caso, a sessão tratou da criatividade e das fantasias da criança interior. Pouco antes do início, ele havia perguntado sobre meu interesse em me tornar jornalista e, principalmente, sobre quando comecei a escrever. Diante da resposta – e do interesse pelas histórias de fantasia ainda na infância -, o terapeuta decidiu que esse seria o ponto de partida. E foi com isso que trabalhamos.
“Você pode criar aí dentro de você um espaço de conforto e proteção, onde você esteja como gosta e merece. Talvez um espaço que tivesse quando, lá atrás, estava escrevendo suas histórias, onde pudesse e possa confortavelmente deixar que aquelas histórias maravilhosas comecem a povoar sua mente de criatividade, criando um canal mágico e bonito”, dizia ele, dentre muitas outras coisas, durante a sessão.
A suavidade foi algo presente todo o tempo, mas o momento mais interessante foi, sem dúvida, quando o médico orientou que minhas mãos subiriam ao comando dele. Dito e feito: lentamente, meus dois braços se desgrudavam da almofada que eu segurava até que a mão esquerda, assim como ele disse, tocasse meu rosto. A outra permaneceu suspensa, mas sem o desconforto habitual de uma circunstância assim.
Apesar dos comandos, durante todo o processo fiquei consciente. Algo que acontece em 100% das vezes, como Facchinetti faz questão de ressaltar. “Durante a hipnose, a pessoa fica totalmente consciente. Coloco meus pacientes em transe, vejo que eles estão, porque existem sinais para essa leitura, tiro eles de transe e a pessoa diz que não estava hipnotizada porque esteve consciente o tempo todo. Deixar de estar consciente se chama morrer ou dormir”.
Por isso mesmo, é impossível, segundo ele, ser sugestionado a praticar ações com as quais não se concorda. “Se eu colocar você em transe e te entregar uma faca para matar alguém, você abre os olhos e vai embora. E ainda me denuncia”, aponta. “Nossa consciência flutua, não estamos conscientes de tudo o tempo todo. Quando dizemos que a pessoa está consciente, estamos dizendo que ela pode tomar as providências que precisa durante todo o processo”.
Os usos da hipnose
Não só médicos e psicólogos são habilitados a utilizar a hipnose. Além deles, também podem trabalhar com o método dentistas e fisioterapeutas – os quatro conselhos o regulamentaram no Brasil. O estudo para isso acontece fora da faculdade, que não faz essa capacitação, e dura dois anos, o primeiro de fundamentação teórico-prática e o segundo para a parte a clínica.
Os usos variam de acordo com a profissão. Um odontólogo, por exemplo, pode empregar a hipnose para a realização de procedimentos sem dor – antes da invenção dos anestésicos, era a ela que se recorria. Diminuição de salivação e sangramentos, melhoria de hábitos e conforto muscular em tratamentos longos também estão nessa lista. Já a fobia de dentista precisa ser encaminhada para o terapeuta.
“Ele tem que mandar isso para o terapeuta, porque não é a área dele. Ele não trabalha com medo. Mas às vezes é difícil de as pessoas entenderem essas interfaces”, aponta João Facchinetti. “Isso é outro rolo. Dentista pode fazer psicoterapia? Não! Médico pode fazer extração de dente? Também não. Infelizmente os conselhos regulamentam, mas não fiscalizam o tanto quanto deveriam”.
Tabela mostra oito benefícios que a hipnose pode trazer
FOTO: REPRODUÇÃO
Atuando fisicamente, a hipnose ainda pode ser utilizada para aliviar sintomas psicossomáticos de asma, urticária. A sexualidade também pode ser trabalhada na terapia, amenizando problemas como disfunção erétil, ejaculação precoce, falta de orgasmo, dor na penetração. Mas, como nada funciona como num passe de mágica, não é só entrar em transe para resolver todos os problemas.
“Ela não cura asma, não é o que eu estou dizendo. Você consegue fazer com que essa passagem entre mente e corpo, que sabemos que acontece, atue de uma forma melhor. Estou preocupado, tenho dor de estômago. Todo mundo sabe dessa relação. Mas conseguimos fazer de uma forma benéfica. Conseguimos fazer algumas coisas, em algumas pessoas, acontecerem, porque nada é para todo mundo”, aponta.
A quantidade de sessões é outro fator que que vai depender de cada paciente. “O que posso dizer é que dura menos tempo do que as psicoterapias tradicionais, que levam cinco, dez anos. E não estou falando que elas não são boas, é a metodologia que funciona assim. Trabalhando com hipnose você vai levar cinco, dez meses. Mas não estou prometendo que as pessoas vão ficar boas nesse tempo, e sim dizendo que, em média, o tratamento é bem mais curto”.
Shows de hipnose
Agora nada disso vale, claro, para os shows de hipnose que se vê por aí. Segundo Facchinetti, são eles o o calo no sapato do método. E, mais do que espanto, iniciativas do tipo podem causar vários problemas para quem se submete a participar delas – incluindo surtos psicóticos e a criação de novos traumas, indo no caminho contrário ao que se propõem os processos psicoterapêuticos.
“Existem algumas situações de problema, como surtos psicóticos desencadeados em uma pessoa sob hipnose, existem traumas, que chamamos de má hipnose, desenvolvidos também nesses processos. Mas isso acontece por alguém que não sabe utilizar a hipnose, que não tem formação, capacitação. Existem casos assim porque a pessoa não sabe como mexer com isso”, destaca o psicólogo e psiquiatra.
E ele detalha como funciona a hipnose de palco. Nesses cenários, há duas questões envolvidas: o poder midiático da televisão – “onde as coisas têm que acontecer”, diz – e uma estratégia utilizada pelos hipnólogos, que fazem testes antes das apresentações e escolhem não só as pessoas mais suscetíveis, mas também as mais interessadas em ter seus 15 minutos de fama.
“O hipnotizador não hipnotiza qualquer pessoa no palco; ele seleciona, às vezes até no intervalo. Vai buscar as pessoas que têm muita vontade de aparecer e aquelas que fazem níveis de transe mais profundos. Juntando isso ele consegue com que as pessoas façam o que ele pede. Mas nesses casos elas também estão conscientes o tempo todo”, aponta o médico.
Médico reforça importância de procurar bons profissionais para a terapia
Diante dos perigos, ele reforça um alerta. “Vemos hipnose de rua, de palco, disso ou daquilo, como que, se por ser um estado natural, ela fosse muito simples. Isso é um equívoco. A coisa mais natural do mundo é a água e de vez em quando alguém morre afogado”, expõe. “A hipnose é como um bisturi. Ele é uma ferramenta maravilhosa na mão de um cirurgião, mas na mão de uma pessoa desavisada pode fazer estragos”.
Para quem pensa em tratar seus traumas ou medos com esse tipo de terapia, ele aconselha que procure um profissional capacitado. Em caso de dúvida, é só buscar os conselhos de cada profissão – em especial as comissões de ética – e pedir referências, informações.
Mas, para quem interessar possa, também é possível se auto-hipnotizar. Nesses casos, o perigo passa longe e o método pode ser feito com tranquilidade, desde que a pessoa tenha treinamento – feito em cursos ou até mesmo durante sessões psicoterapêuticas. Ele serve para condições essenciais no cotidiano, como dormir melhor, render mais, ter uma postura diferente durante o dia.
“É seguro porque não consigo, por estruturas próprias da psique, mexer em coisas muito profundas minhas, porque tenho bloqueios pessoais. Por isso minha autoanálise em qualquer abordagem de psicoterapia é limitada”, explica João Facchinetti. “Mas entrar em transe é muito gostoso. Depois que você perde o medo aprende a aproveitar esse estado”, completa, verdadeiramente, ele. Palavra de quem já passou por isso.
Matéria extraída do site: http://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2017/12/bem-longe-dos-shows-de-tv-hipnose-e-utilizada-em-terapia-para-tratar-traumas_45300.php
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